Em busca de um Destino - parte 2


Salvador Dalí pintando quadro para DestinoO curta-metragem da Disney chamado DESTINO foi lançado oficialmente em 2003, mas sua história remete há muito tempo antes disso. Mais especificamente em 1945, quando Salvador Dalí e Walt Disney foram apresentados em uma festa.

Esta Observação é resultado de um trabalho de conclusão de curso (TCC) produzido em 2010 onde a proposta é descobrir através de diversos conceitos técnicos se Destino pode ou não ser considerada uma obra de Arte.


Nesta segunda parte teremos:
- Aprofundamento histórico da obra (de 1945 a 2003)
- Análise da obra

2.3. A IDEALIZAÇÃO DE DESTINO

Walt originalmente planejou usar Destino, uma balada romântica do compositor mexicano Armando Dominguez, em um curta-metragem apresentando a cantora e dançarina, também mexicana, Dora Luz – semelhante ao que havia feito com Carmem Miranda em Alô Amigos (1943). Mas Dalí acabou entusiasmando-se em torno da ideia de Destino.

John Hench, desenhista do estúdio, foi convocado por Walt para auxiliar Dalí no curta. Hench acabou escolhido por ter sido o supervisor de Fantasia no segmento Toccata and Fugue in D Minor – com música de Johann Sebastian Bach – usando imagens abstratas pela primeira vez em um filme Disney. Por fim, juntou-se ao grupo o também desenhista Bob Cormack (PEGORARO, s/ ano).

Salvador Dalí na Disney com quadro para DestinoQuanto ao enredo, dependia de quem era o entrevistado. Dalí dizia ser "uma exposição mágica do problema da vida no labirinto do tempo". Já Walt, "somente uma simples história de uma jovem garota em busca do verdadeiro amor" (PEGORARO, s/ ano).

Um contrato de dois meses foi fechado entre Dalí e o estúdio em 1946. Tempo em que se acreditava concluir a obra. Mas foi durante oito meses que o artista surrealista frequentou a Walt Disney Estúdios. Período no qual chegava pontualmente às 8 horas e meia da manhã e permanecia até às 17 horas. Muitas vezes, Dalí era acompanhado por Gala (GABLER, 2009, p. 473-474).

Dalí e Hench pretendiam criar uma nova técnica de animação, que seria equivalente cinematográfico à ‘paranóia crítica’ de Dalí. Este método, que teria pouca conexão com o título, é enormemente  inspirado pelo trabalho de Freud no subconsciente e na inserção de imagens ocultas duplas no trabalho de arte. Dalí apresentaria uma imagem que o espectador reconheceria como sendo uma coisa e lentamente forçaria o espectador a visualizar formas estranhas na imagem, que poderiam eventualmente revelar algo novo (PEGORARO, s/ ano).

Storyboard de Destino (Disney)Finalizados os storyboards, Hench realizou um ‘pencil-test’ – onde pode-se ver os esboços em movimento – de dezoito segundos, na presença de Dalí e Walt em um cinema de Monterey, Califórnia, sendo bastante elogiado pelo dono do estúdio.

No entanto, após vinte e duas pinturas e cento e trinta e cinco desenhos de storyboard, Dalí foi convidado a abandonar Destino por conta da situação econômica do Walt Disney Estúdios, bastante deficitária após a Segunda Guerra Mundial e o fracasso de bilheteria dos últimos lançamentos (PEGORARO, s/ ano).

Storyboard de Destino (Disney)


2.4. O DESTINO DE DESTINO

Em 1999, Roy Edward Disney, sobrinho de Walt procurava materiais engavetados no estúdio, para que pudesse completar o filme Fantasia 2000. Entre os esboços encontrados estavam os dezoito segundos de Destino elaborados por Hench.

Capa do filme Fantasia 2000
O curta elaborado por Dalí, Hench e Disney é mencionado em Fantasia 2000 (2000), na abertura do segmento baseado em The Steadfast Tin Soldier (O Firme Soldado de Chumbo) de Hans Christian Andersen – como introdução do vídeo, a cantora e atriz Bette Midler informa alguns projetos na linha Fantasia tinham sido cancelados por Walt, incluindo Destino (DESOWITZ, 2003).

Interessado em retomar o projeto, e incluí-lo no futuro lançamento da empresa, Fantasia 2006, Roy escolheu o estúdio francês da Disney. Para retomar o curta foram convocados Baker Bloodworth – um dos responsáveis por Aladdin (1992) e A Bela e a Fera (1991) –, como produtor, e Dominique Monfrey, em seu primeiro trabalho como diretor. E, por fim, o próprio Roy assumiu como produtor-executivo.

O projeto demorou quatro anos para ser concluído. Mas, enquanto aguardava finalização, Fantasia 2006 foi cancelado, e a Disney resolveu apostar em Destino como um curta-metragem – o mesmo ocorreria com outros três segmentos que já estavam em finalização, The Little Match Girl (2006), One by One (2004) e Lorenzo (2004) (DESOWITZ, 2003).

Embora os produtores aleguem que foram fiéis as pinturas e anotações de Dalí e Hench, um ponto importante dificulta a comparação com ideia inicial da obra com o resultado cinquenta e sete anos depois: a falta do roteiro da época. Quando iniciou a produção de seus desenhos animados, Walt era conhecido por armazenar toda a estrutura da história e guiar seus desenhistas para a finalização da animação. Após sua morte, o estúdio ficou relativamente perdido, e isso refletiu em suas obras. O fato somente foi corrigido recentemente, em produções como A Pequena Sereia (1989) e O Rei Leão (1994) (SURRELL, 2009, p. 61-65).

Há no filme apenas uma cena – a que duas cabeças sob cascos de tartaruga se unem formando uma bailarina ao centro – que estava no rolo original de Dalí e Hench. Embora pinturas e esboços originais tenham sido usados (DESOWITZ, 2003).

Destino estreou em 2 de junho de 2003 no International Film Festival de Animação de Annecy, em Annecy, França – famoso festival de animação que ocorre anualmente. Nos cinemas, a obra teve lançamento limitado, apenas acompanhando os filmes Garotas do Calendário (2003) e As Bicicletas de Belleville (2003).

Foi um grande sucesso, que rendeu prêmios e ainda uma indicação ao Oscar de melhor curta-metragem daquele ano (PEGORARO, s/ ano).

Entre julho e setembro de 2007, o filme foi exibido como parte da exposição Dali & Film, na Tate Modern, em Londres. Em seguida, na exposição de Dalí no Los Angeles County Museum of Art, entre outubro de 2007 e janeiro de 2008, e também no Museu Dalí, em St. Petesburg, na Flórida, em 2008. Em meados de 2009, teve apresentação em Melbourne, na Austrália, na National Gallery of Victoria, através da Exposição de Dalí Liquid Desire. E por fim, entre o final de 2009 e abril de 2010, no Dayton Art Institute em Dayton, Ohio, em uma exposição intitulada Dalí and Disney: The Art the Animation of Destino (BARBAGALLO, 2010).


3. ANÁLISE DA OBRA

3.1. DESCRIÇÃO E PECULIARIDADES DA OBRA

Uma linha fina na horizontal inicia o curta-metragem. Em seguida, a assinatura dos dois principais responsáveis pelo começo do projeto: Salvador Dalí e Walt Disney. A mesma linha delimita o cenário que vem a seguir, um horizonte com montanhas e um deserto a sua frente. Eis que surge a protagonista da história, uma moça morena, de belos olhos, completamente nua.

A música, até então, apenas instrumentalizada ganha voz na cantora mexicana Dora Luz no momento em que vemos pela primeira vez um templo em formato de pirâmide. Como que colado a ele, há uma escultura de um homem com um pássaro no centro do peito, e um relógio.

Eis a abertura de Destino. Até este momento, já somos apresentados a três elementos que serão constantes no filme: garota, pássaros e relógios. A estética da obra já revela a mescla de estilos artísticos que virão a seguir. De um lado, o céu totalmente azul, os tons pasteis e o uso do claro-escuro são marcas claras de Salvador Dalí e do Surrealismo. Por outro, a música, embora tenha uma letra bastante densa para um filme Disney, é marca das produções do estúdio até aquele momento, como Bambi e Pinóquio. A garota, no entanto, tem pouco do ‘espírito’ de ambos, principalmente por ter sido produzido pelo estúdio francês da Disney. Se comparado com outras animações, claramente se assemelha mais à As Bicicletas de Belleville e à Renaissance (2006), duas animações contemporâneas do país europeu, do que às estadunidenses dos anos 1940/1950, não fosse uma única exceção: Fantasia – alguns dos segmentos do filme baseado na música clássica da Disney apresentam traços bastante realistas ou, mesmo em alguns casos, feito totalmente com figuras abstratas.

Por fim, a pirâmide e a estátua têm efeitos 3D, mas nada cartunesco como os filmes da Disney/Pixar. Este detalhe em especial tinha sido pensado por Dalí, mas foi facilitado, e provavelmente ampliado, por conta da tecnologia atual.

O restante da história não segue uma linearidade, há muita subjetividade e se faz muito o uso da gestalt. E uma aparente história de amor impossível. O relógio – que em vários momentos aparece derretido, remetendo aos relógios derretidos dos quadros de Dalí – é quem revela o tempo como principal fator do impedimento. Ela percorre durante muito tempo passando por transformações do mundo – um exemplo é quando ela cai em uma série de telefones, após ficar presa nua dentro de uma concha e andar por um enorme corpo humano em espiral, metáfora para o nascimento de uma pessoa – quando, na realidade, não passou de um devaneio. Em termos de estética, é muito parecido com o início.

Na sequência da história, a garota entra em estado de transe e começa a dançar livre, tão livre que sua cabeça se transforma em um dente de leão – uma flor leve que voa fácil com o vento. Sua liberdade atinge o coração do ser amado quando ela se sente livre, o coração do seu amado e o homem idealizado nasce. Mas o tempo resiste em deixá-lo. Neste momento do filme, um plano remete à Um Cão Andaluz: o homem aparece com um buraco na mão, e de dentro deste buraco saem formigas, que de repente se transformam em homens montados em suas bicicletas (mais uma metáfora da modernidade).

Há também um momento que remete a uma obra de Dalí. A hora em que a mulher, vista pelo lado de fora de uma muralha, se mescla as imagens ao seu redor e se transforma em um rosto de homem. Uma referência direta ao quadro A Aparição de um Rosto e uma Fruteira numa Praia (1938) – conhecido pela quantidade de informações inseridas.

O casal consegue, por fim, superar as barreiras impostas pelo tempo e se unem no final, onde ela é mostrada no lugar do pássaro – ou seja, onde estaria o coração – na estátua junto a pirâmide.


3.2. A ANIMAÇÃO EM FRAMES

Frames de Destino (Disney)

3.3. CINEMA DE ARTE OU DE ENTRETENIMENTO?

Destino recebeu muitos elogios em seu lançamento. Entre os motivos para os aplausos estavam: o fato de ser uma obra unindo animação Disney e Surrealismo; mesclar quadros de Dalí com efeitos 3D; e conter uma história não linear e musicada. Embora pouco disso fosse realmente inédito para uma produção cinematográfica, a animação se sobressaiu e acabou indicada ao Oscar de curta-metragem.

O pesquisador e historiador de cinema Leonard Maltin afirma que o filme “é uma mistura de kitsch da Disney dos anos 1940 e Dalí puro, com uma sobreposição de sensibilidade contemporânea” (s/ autor, 2008).

Já o site Animation World Network, especializado em animação, aponta que “Destino é composto por uma mistura perfeita imagens geradas por computador e animação elaborada tradicionalmente” (DESOWITZ, 2003).

Mas a questão é: Destino pode ser encaixado como uma obra de arte?

Antes de responder a questão, é necessário buscar saber se o cinema em si pode ser encarado como Arte ou apenas entretenimento.

Existem várias formas para abordamos o conceito de arte, principalmente sua originalidade e padrão de gosto. Em relação ao cinema, esta discussão acaba um pouco mais complicada, visto que ele acabou conhecido mundialmente como sétima arte, podendo assim ser interpretado como tal tudo que vier deste meio de comunicação.

No entanto, acostumou-se entre a crítica especializada chamar de arte alguns filmes em especial, principalmente as obras autorais, onde o diretor deixa suas marcas pessoais e estas acabam mais importantes do que o filme em si. Exemplos não faltam: Fritz Lang (Metropolis, 1927), François Truffaut (Os Incompreendidos, 1959; Fahrenheit, 1966), F. W. Murnau (Nosferatu, 1922), Zhang Yimou (Tempo de Viver, 1994; Herói, 2002), Akira Kurosawa (Rashomon, 1950; Os Sete Samurais, 1954), entre outros.

Mas há controvérsias. Como o caso do crítico de cinema e professor universitário André Setaro, que questiona que

“o que se convencionou chamar erroneamente de cinema de arte não passa, na verdade, de uma falácia. O cinema de arte não existe e, inclusive, a expressão foi dada pelos exibidores (que são comerciantes) para designar, na década de 50, os filmes de tomadas demoradas, sem ação, quando da explosão no mercado das obras de Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Roberto Rossellini, entre tantos outros. Os exibidores é que denominaram estes de filmes de arte porque filmes que não atingiam muito público, e o mercado, restrito, dominado pelo cinema americano. Queriam eles dizer, na verdade, se tivessem mais noção da arte do filme, que os filmes de arte se caracterizavam pela reflexão em detrimento da ação” (SETARO, 2010).

O filósofo e sociólogo Theodor Adorno também é outro defensor de que não há arte quando se fala de cultura de massa. Durante seu exílio nos Estados Unidos, entre 1938 e 1846, percebeu que a mídia não se voltava apenas para suprir as horas de lazer ou dar informações aos seus ouvintes ou telespectadores, mas fazia parte do que ele chamou de indústria cultural. Um imenso maquinismo composto por milhares de aparelhos de transmissão e difusão que visava produzir e reproduzir um clima conformista e dócil na multidão passiva (SCHILLING, 2009).

Em um pensamento bastante contrário, encontra-se Marshall McLuhan. O filósofo e educador canadense, além de entusiasta dos meios de comunicação, acreditava que a televisão, e também o cinema, era um mosaico que convidava os sentidos a interagirem e a mente a coletivamente conectar-se. Podendo assim, ser denominado de arte (MCLUHAN, 2004, p. 346).

Parte 1 - Parte 2 - Parte 3 (final)

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