Em busca de um Destino - parte 3 (final)


Capa do filme Fantasia, da DisneyO curta-metragem da Disney chamado DESTINO foi lançado oficialmente em 2003, mas sua história remete há muito tempo antes disso. Mais especificamente em 1945, quando Salvador Dalí e Walt Disney foram apresentados em uma festa.

Esta Observação é resultado de um trabalho de conclusão de curso (TCC) produzido em 2010 onde a proposta é descobrir através de diversos conceitos técnicos se Destino pode ou não ser considerada uma obra de Arte.

Nesta terceira, e última, parte teremos:
- Análise da obra (continuação)
- Considerações finais

3.4. QUANTO A ORIGINALIDADE DA OBRA

Quando Destino foi lançado, a Walt Disney Estúdios já havia levado aos cinemas Fantasia. O filme em questão é um ótimo caso de exemplo de originalidade no cinema. Com esta obra, Walt, como já havia feito em relação a contos de fadas (Branca de Neve e os Sete Anões, 1937) e livros (Pinóquio), resolveu adaptar músicas clássicas para os desenhos animados.

Dois detalhes chamam a atenção em Fantasia:

1º) O filme foi elogiado por periódicos quando de seu lançamento. O Times escreveu: “Fusão de música, emoção e arte gráfica”; The New York Times: “A história do cinema tinha sido feita naquela noite no cinema Broadway (...) e Fantasia foi a melhor coisa que jamais aconteceu na tela”.

Mas sobraram espaço para críticas também. E muitas em um único detalhe, que já havia sido levado a Walt por Leopold Stokowski, maestro do filme: a liberdade de interpretação dada pelo estúdio à Pastorale, a Sexta Sinfonia de Beethoven, mesclando grupos de faunos e fêmeas de centauros. Para os críticos, soou como grosseria.

Mas Walt rebateu, assim como faria diante de qualquer outra crítica que receberia pelas adaptações nas obras realizadas pelo seu estúdio, dizendo que todas as modificações foram em prol do melhor para o produto enquanto filme (GABLER, 2009, p. 394-395).

2º) Para a apresentação de Fantasia, o criador dos estúdios Disney queria fazer com que as pessoas tivessem uma sensação única. Com isso em mente, criou um sistema de som batizado de Fantasound. O objetivo era aproximar o som e as imagens – lembre-se que estamos falando de 1940 – do espectador. Muitos dos elogios ao filme foram decorrentes dessa aparelhagem, que logo foi copiada pelos concorrentes (GABLER, 2009, p.358).

Tendo a questão da originalidade em mente, é possível afirmar que Fantasia, neste caso, pode ser encarado como obra de arte, muito em função do artista (Walt Disney e seus desenhistas). Mas ainda fica a questão se Destino, mesmo tendo sido realizado após a morte de seus idealizadores, segue a mesma linha.

Deve-se levar em consideração que não devemos descartar a possibilidade do curta ter originalidade, mesmo tendo sido feito depois de Fantasia. Este se refere à música clássica. Em Destino, estamos falando de adaptação de quadros de Salvador Dalí para uma animação, fato que realmente não foi realizado anteriormente. Há grande possibilidade de que algumas das peculiaridades de Dalí possam ter sido utilizadas em outros filmes, tal levantamento não foi realizado por esta pesquisa, mas, com certeza, não o foi com tanta abundância como no curta-metragem.


3.5. PADRÃO DE GOSTO

Quadro com o retrato de David HumeO filósofo David Hume pregava que existe uma filosofia que distingue sentimento de julgamento, o que gera a impossibilidade de se atingir qualquer padrão de gosto. “O sentimento está sempre certo – porque o sentimento não tem outro referente senão ele mesmo, e é sempre real, quando alguém tem consciência dele” (HUME, 1973, p.320). Por isso, um sentimento somente pode ocorrer quando da conformidade entre ele à realidade. Portanto, não existe beleza em objeto, a beleza é pessoal de cada indivíduo.

Desta forma, toda definição de beleza depende da delicadeza de espírito e do contexto existente, bem como momento e lugar adequado. Por isso, é indispensável “uma perfeita serenidade de espírito, concentração de pensamento, a devida atenção ao objeto: se faltar qualquer dessas circunstâncias, nosso experimento será falacioso e seremos incapazes de avaliar a católica e universal beleza” (HUME, 1973, p.323).

No entender de Hume, a capacidade de perceber de maneira mais exata os objetos mais diminutos, sem permitir que nada escape à atenção e à observação, é reconhecida como a perfeição de cada um dos sentimentos e faculdades (HUME, 1973, p.325).

Há de se concluir neste caso, portanto, que nenhum homem pode sentir-se satisfeito consigo mesmo se suspeitar que lhe passou desapercebida qualquer excelência ou deficiência de um discurso. E, sendo Destino, extremamente complexo em sua história não linear e cheio de metáforas, há uma dificuldade em interpretá-lo. Assim como boa parte das obras de Dalí. Mas também talvez seja este o motivo do fascínio pelo curta-metragem.


3.6. A TRANSFIGURAÇÃO DO LUGAR-COMUM

Capa do livro A transfiguração do lugar-comumO crítico Arthur Danto se interessou pela filosofia da arte por meio dos cartões apresentados por Andy Warhol, na Galeria Stable em Manhattan, em 1964, e achava que a arte e a não-arte tinham que ser invisivelmente diferentes. Danto se perguntou porque a Brillo Box, de Warhol, era realmente uma obra de arte, e porque as vendidas no supermercado verdadeiramente como objetos utilitários não eram.

Segundo o crítico, “o que é interessante na arte é a capacidade espontânea do artista de nos fazer ver seu modo de ver o mundo – não o mundo como se o quadro fosse uma janela, mas o mundo como nos dá o artista”. Portanto, a grandeza da obra está na grandeza da representação que a obra materializa. Se o estilo é o homem, a grandeza do estilo é a grandeza da pessoa (DANTO, 2009, p.87-90).

Logo, a dúvida levantada anteriormente, sobre classificarmos Destino como obra de Arte, volta agora com outra pergunta apoiada nas ideias do crítico: O trabalho – no caso, Destino – é coerente com o conjunto da obra da Dalí e Disney? “É a harmonia do gosto que está em questão, e isso não pode ser reduzido a fórmulas. Trata-se de uma atividade governada por razões, sem dúvida, mas razões que somente são convincentes para quem já tem capacidade de julgar ou já tem gosto” (DANTO, 2009, p.296).

Sobre Warhol, Danto conclui que, como obra de arte, a Brillo Box faz mais do que afirmar que é uma caixa de sabão dotada de atributos metafóricos. Ela faz o que toda obra de arte sempre fez: “exteriorizar uma maneira de ver o mundo, expressar o interior de um período cultural, oferecendo-se como espelho para flagrar a consciência dos nossos reis” (DANTO, 2009, p.297).

Sobre Destino, seria necessário descobrir se quando foi apresentado trouxe à consciência aos espectadores de sua maneira de ver o mundo. Se convence enquanto uma história de amor impossível. E mesmo se há algum sentido nessa união Dalí/Disney.

Embora as obras de pintor tenham sido transformadas em desenho animado pode-se concluir que não desmerece o valor da obra de arte. Além disso, as telas originais criadas pelo artista exclusivamente para a animação estão inseridas na obra. E ainda que estejam animadas, deve-se levar em consideração que, não só esse tinha sido o planejamento original do próprio Dalí ao pintar as telas, como a ideia de transformar alguns gráficos em 3D foi sugerida também pelo próprio, quando o projeto ainda tinha seu envolvimento.

Ou seja, as intervenções não podem ser consideradas intervenções, uma vez que foram produzidas para tal objetivo. Conclui Danto, “ainda que um homem possua muitas propriedades exteriores e transientes, o estilo diz respeito às qualidades que pertencem a sua essência” (DANTO, 2009, p. 292).


3.7. REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA

A reprodução de imagens ao mesmo nível da produção oral teve a sua evolução através da litografia para o jornal ilustrado, e da fotografia para o cinema. Então, as obras de Arte passam a ser ‘reproduzidas’ pela arte cinematográfica. A autenticidade da existência única do objeto de arte é discutida por Walter Benjamin – lembrando que seu ensaio foi publicado em um período na qual a tecnologia era diferente da utilizada na produção cinematográfica atual.

Retrato de Walter Benjamin
O original, partindo da análise física e de tradição do objeto de arte, tem o ‘aqui e agora’ como o autêntico, aquele que é idêntico a si mesmo, mas “a autenticidade escapa a reprodutibilidade técnica”, especifica Benjamin (BENJAMIN, 1994, p.167-168). A reprodução manual, considerada por ele como falsificação, é menos autônoma que a reprodução técnica, e esta ainda pode acentuar os aspectos não vistos na obra original, colocando situações impossíveis de visão até para o próprio original, fazendo um processo de aproximação do espectador diante do objeto. Mesmo assim, é perdida a autoridade e o testemunho histórico daquilo que está sendo visto, destruindo sua aura. A reprodução faz com que a existência única seja substituída pela existência serial, atualizando o objeto, e liquidando o valor tradicional do patrimônio da cultura.

Benjamin ainda contextualiza a questão das obras cinematográficas, e aponta que neste caso a difusão se torna obrigatório devido aos custos da produção. Além disso, “o filme é uma criação da coletividade”, revela (BENJAMIN, 1994, p.172).

Em relação à Destino, primeiro foi lançado junto a outros dois filmes. Um inglês (Garotas do Calendário), com baixo público, e outro francês (As Bicicletas de Belleville), uma animação também voltada a um público específico. Posteriormente, a obra tem sido vista apenas em exposições, ou específicas ou de Dalí. O fato tem mantido Destino em uma aura de obra de arte, dado seu valor de culto e de exposição.

“O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido” (BENJAMIN, 1994, p.174).


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há uma interessante analogia de Arthur Danto entre possíveis obras de arte, com base nos estudos do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Uma das proposições seria uma pergunta subtracionista: “o que resta quando se subtrai o quadrado vermelho de tela da obra intitulada Quadrado Vermelho?” (DANTO, 2009, p.38).

Após toda a análise efetuada em torno de Destino, o que temos em mãos pode ser resumido em uma pergunta semelhante: o que resta quando se subtrai a animação de Destino?

Possivelmente, tal resposta não justifique a classificação do curta-metragem como obra de arte. Mas há também de se levar em consideração a originalidade da obra (união dos quadros de Dalí com a animação Disney), o padrão de gosto (complexidade é parte do fascínio da obra), a transfiguração do lugar-comum (intervenções na obra já faziam parte do plano original) e reprodutibilidade técnica (o curta tem sido sempre resguardado para ocasiões especiais, sem comercialização até o momento).

Destino tem como sua essência as obras de Dalí. Se tirarmos a animação, Dalí ainda estará lá. Suas obras ou mesmo suas características permeiam o curta-metragem. Ao mesmo tempo, se tirarmos Dalí, ainda teremos como outra fonte de essência a animação sonorizada, marca dos trabalhos da Disney – a cantora Dora Luz, de Destino, ainda trabalhou em outra obra da produtora anteriormente, Você Já Foi à Bahia? (1945), e tem voz bem semelhante as demais cantoras da época em que o curta foi inicialmente trabalhado.

Um complementa o outro. E é essa união que faz Destino fluir, mesmo não tendo sido concluído nos anos 1940 e com pessoas que nunca tiveram sequer ligação com Dalí ou Hench. A essência de um junto à essência de outro é o que torna esta obra única. E também uma obra de arte.


5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-- (2008). A combinação perfeita entre Dalí e Disney. Disponível em <http://spoilermovies.com>. Acesso em 21 de novembro 2010.

BARBAGALLO, Ron (2010). The Destiny of Dalí’s Destino. Disponível em <http://www.animationartconservation.com>. Acesso em 21 de novembro 2010.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DANTO, Arthur C.. A transposição do lugar-comum. 2 ed. São Paulo: 2009.

DESOWITZ, Bill (2003). Disney/Dali's completed Destino kicks off Annecy Fest. Disponível em <http://www.awn.com>. Acesso em 21 de novembro 2010.

GABLER, Neal. Walt Disney: O triunfo da imaginação americana. 1 ed. Osasco: Novo Século Editora, 2009.

HUME, David; BERKELEY, George. Os pensadores: Berkeley/Hume. 5 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1992.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. 14 ed. São Paulo: Pensamento-Cultrix, 2005.

MICHAELIS. Michaelis dicionário escolar língua portuguesa. 1 ed. São Paulo: Melhoramentos, 2009.

NADER, Ginha. Walt Disney, prazer em conhecê-lo. 1 ed. São Paulo: Maltese, 1993.

PEGORARO, Celbi Vagner (s/ ano). Destino (Disney e Salvador Dalí). Disponível em <http://www.animation-animagic.com>. Acesso em 21 de novembro 2010.

SETARO, André (2010). O cinema de arte não existe, Dona Leonor! Disponível em <http://www.terramagazine.terra.com.br>. Acesso em 21 de novembro 2010.

SHANES, Eric. Dalí. 1 ed. Castelo Branco: Estampa, 1994.

SHILLING, Voltaire (s/ ano). Adorno e a cultura de massa. Disponível em <http://www.educaterra.terra.com.br>. Acesso em 21 de novembro 2010.

SURRELL, Jason. Os segredos dos roteiros da Disney: Dicas e técnicas para levar magia a todos os seus textos. 1 ed. São Paulo: Panda Books, 2009.

O fim (the end) da Walt Disney

Parte 1 - Parte 2 - Parte 3 (final)

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