À época, o jornal A Gazeta resumia o livro como a reunião da "tradicional narrativa visual dos mangás, com os traços elaborados dos quadrinhos franco-belgas e um olhar mais puro diante da vida herdado do cinema de François Truffaut e Jean-Luc Godard. A história em quadrinhos conta de forma delicada o romance entre o autor e uma jovem japonesa chamada Yukiko".
A obra, ainda, tem um porém interessante: poderia não ter chegado ao fim, quando a jovem vai embora e Boilet, que já tinha começado a desenhar a história com seu rosto, fica sem inspiração.
A Observação a seguir estuda a alternativa encontrada pelo autor para finalizar seu trabalho. E ainda soluções encontradas por outros artistas que tiveram o mesmo problema.
INTRODUÇÃO
Antes da leitura da obra que irei Observar agora não pensaria duas vezes antes de responder 'não' ao título desta postagem. Hoje, penso que seria mais plausível responder: 'sim, mas não é fácil'.
Frédéric Boilet nos engana em O Espinafre de Yukiko desde o início. Logo na capa vemos Mariko Hoya, uma espécie de atriz que substituirá a verdadeira Yukiko do meio para o final da história. Mas vamos remontar a história em um curto parágrafo para analisarmos melhor como foi feita esta troca.
A TRAMA

Vale destacar que se trata de um bonito romance, com uma trama bem amarrada, poucos diálogos, embora bem construídos. Além nos trazer um traço realista, quase sempre em primeira pessoa, nos arrastando para dentro da história, que acaba sendo rápida demais, deixando a vontade de saber o que acontece depois daquela porta ser fechada.
Quanto a história em si, impossível para quem já viveu, consciente ou inconscientemente, uma história de amor a três não refletir diante de uma das últimas falas de Yukiko no livro:
“Mas agora eu gosto de vocês dois...” (pág. 117)
TROCA DE 'ATRIZES'
Voltemos agora ao tema central desta Observação, a mudança da protagonista.
Yukiko, a original, 'some' após a primeira relação sexual entre ela e Boilet. Para não assustar o leitor, e deixar no ar a dúvida se seriam a mesma pessoa ou não, na cena seguinte o protagonista/Boilet comenta sobre o novo corte de cabelo de Yukiko. E é nas páginas a seguir, já com Mariko Hoya a substituindo, que passamos a ter ideia do que pode ter acontecido.
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A verdadeira Yukiko mostra seus encantos nos últimos quadros onde aparece em uma cena de sexo |
“- O que é que eu vou desenhar quando você não estiver mais aqui? – diz Boilet.
- Eu ainda não desapareci completamente! – responde Yukiko.
- É que eu comecei a história com o seu rosto. Como é que eu vou fazer quando você não me quiser mais?” (pág. 77-79)
Por fim, ela lhe responde “ah, bem, você recomeça tudo do zero!”. Mas não foi o que ele fez. E somente no posfácio o autor mostra-nos quando conheceu Mariko e porque decidiu – ou teve que – utilizá-la no lugar da original.
“- Você tem um jeito curioso de desenhar só paisagens! – afirma Mariko após conhecer Boilet e ele lhe explicar seu método de desenho e que não conseguia prosseguir com seu novo álbum porque a sua modelo havia ido embora e desde então só conseguia fazer paisagens.
- Quer dizer... Você me lembra um pouco... – diz Boilet pensando alto.
- Ah, é? Eu me pareço com ela?
- De jeito nenhum! Mas vocês têm a mesma camiseta listrada!...” (pág. 139)
EXEMPLOS EM OUTRAS ÁREAS
Como disse lá nas primeiras linhas, é possível mudar o protagonista de uma trama. Mas não é fácil, depende do contexto, como e por que está sendo feito, e como isto será explicado ao leitor/espectador, embora isso nem sempre seja necessário.
Mudanças de personagens/atores para o mesmo papel em obras são mais comuns do que se imagina. O cinema e as séries de TV nos dão mostras claras de que isso ocorre.
Dois atores interpretaram Darrin Stephens (ou James Stephens, como ficou conhecido no Brasil), o marido Samantha, em A Feiticeira (1964-1972): Dick York e Dick Sargent. Doctor Who (desde 1963), longeva série inglesa, já teve onze interpretes. James Bond (desde 1962), 6. Kitty Pride teve uma atriz para cada um dos três filmes dos X-Men nos anos 2000 (Sumela Kay, Katie Stuart e Ellen Page). Só para citar alguns.
Entretanto, poucas são as obras em que o mesmo personagem é feito por mais de um ator em um mesmo filme ou episódio de série. O Corvo (1994), Harry Potter (2001-2011) e O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (2009) são exceções e tiveram a mudança provocada pela morte de Brandon Lee, Richard Harris e Heath Ledger, respectivamente. Reparem que em cada um dos exemplos os diretores tiveram uma saída diferente:
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Brandon Lee, Richard Harris e Heath Ledger: três atores que faleceram e deixaram suas obras incompletas |
- A morte de Richard Harris não alterou, também não poderia por se tratar de uma série de filmes baseada em uma obra fechada, os rumos de Albus Dumbledore. Michael Gambon o substituiu a partir do terceiro filme.
- Heath Ledger deu dor de cabeça à Terry Gilliam, que precisou reinventar cenas para realocar três atores no papel de Tony: Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A diferença entre Yukiko original (esq.) e Mariko Hoya: mesma cena cada qual com seu rosto |
“- Yukiko...? – indagou Boilet – ... o seu novo corte de cabelo...
- Você não gostou? – pergunta a jovem.
- Claro que gostei... é só que... posso ver Bora Bora? – prossegue Boilet em referência ao apelido que ele deu a cicatriz na testa de Yukiko.
- Tá bom assim? – diz erguendo os braços – Eu até coloquei a camiseta listrada!
- Ufa! Por um instante achei que tivesse mudado”. (pág. 62-64)
E ela realmente mudou, mas Frédéric Boilet soube trabalhar o uso da fala em função da história. Mesclar elementos diferentes e semelhantes entre as duas jovens (cabelo e camiseta listrada, respectivamente). O resultado final beneficia a história, dando-lhe complemento, mesmo o romance de Boilet e Yukiko em si já tendo seu charme.
O ESPINAFRE DE YUKIKO
Roteiro e desenhos: Frédéric Boilet
Editora: Conrad
Número de páginas: 146 páginas
Ano de lançamento: 2005
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