Mister No | Um italiano vê o Brasil

Mister No
Há um templo maia escondido no coração da floresta amazônica e desde a extinção deste antigo povo ninguém mais lá adentrou. Dizem entre os índios Tukanos1 – os mais próximos em termos de localização geográfica – que lá habitam os cadáveres dos antigos senhores da floresta. E uma remota lenda afirma que, se qualquer estrangeiro ultrapassar a sua entrada, toda a casa de pedra tombará e os espíritos dos mortos se vingarão perseguindo aqueles que não os souberam proteger dos profanadores, ou seja, os Tukanos.

Este tom de mistério e suspense permeia a história Rio Negro / O Templo dos Maias de MISTER NO2. E assim como praticamente todas as aventuras da Sergio Bonelli Editore, também sobra espaço para muita ação, emoção, comédia e até romance.

O que mais chama atenção é a inserção do Brasil e dos Maias na mesma história. A Observação a seguir visa mostrar este Brasil e tentar traçar parâmetros com a realidade. Afinal, em Mister No, estaria o país verdadeiramente retratado?

A CIVILIZAÇÃO MAIA

Para fins de localização, a lendária civilização teve início há mais de três mil anos (segundo evidências arqueológicas), alcançando seu auge entre os anos 250 d.C. e 900 d.C., quando habitou grande parte do México e o norte da América Central (onde hoje se localiza Guatemala, Belize, El Salvador e Honduras). Ficou conhecida pela riqueza do sistema de escrita e da cultura, dos estudos matemáticos, astronômicos e suas construções. Iniciou sua decadência entre os séculos VIII e IX, até ser absorvido pela expansão do império Asteca no século XV.

Capa da história em quadrinhos Mister No - Rio NegroEste retrato é importante para deixar claro que, ao menos o que se sabe, Brasil e Maias nunca tiveram qualquer ligação. O roteirista da história, Guido Nolitta3, brinca mesclando a ficção e a realidade. Segundo a história, ainda que a informação seja escassa, sabemos que uma inscrição encontrada nas Honduras Britânicas4 dizia que um grupo de exilados políticos maias teria deixado Yucatán, se estabelecendo em uma zona da Amazônia brasileira. Quando o templo é localizado nos quadrinhos é perceptível o respeito dos autores pela civilização no que tange artefatos, monumentos e esculturas.

Ao mesmo passo, vale a pena dizer pontos que ficaram sem respostas. Por exemplo, por que o tal grupo maia se limitou apenas a poucos metros quadrados em meio à floresta? Que fim teve essas pessoas? Infelizmente, a pirâmide – que era uma das poucas coisas relacionadas ainda em pé e poderia ser a fonte solucionadora – desmorona ao fim da história.


O BRASIL E A AMAZÔNIA

Já nosso país tem um de seus territórios menos habitados apresentado. E, embora seja italiano, Nolitta trata com muito cuidado a localização da história. Observe essas duas passagens:

Capa da história em quadrinhos Mister No - O templo dos Maias1º) “Em Manaus, Amazonas, quando chove, a coisa é pra valer, gente! O céu fica coberto de repente por densas, que envolvem toda a região com uma capa plúmbea, descarregando então  uma avalanche d’água antes mesmo que se tenha tempo de procurar abrigo!
E as pessoas? Dirão vocês. Bem, as pessoas estão habituadas. Aceitam a coisa com a tradicional filosofia sul-americana e esperam... esperam que a incrível cortina líquida se dissolva e se preparam para suportar a inevitável consequência do retorno do sol e do calor, um calor tão úmido e debilitante a ponto de tolher a força de mover um dedo” (pág. 5-7).

2º) “A fresca noite tropical transcorre tranquilamente e quando o sol se tinge com as rosadas cores da aurora o mais madrugador dos Tukanos sai ainda meio sonolento da cabana para reatiçar as brasas sobre as quais vai assar o seu alimento cotidiano, as enormes bananas chamadas ‘platanos5’” (pág. 61-62).

Outros momentos chamam a atenção para a fauna e a flora, sem o uso do narrador, como quando o navio, embarcado pelos aventureiros em busca da cidade Maia liderados por Mister No, fica preso em meios as tapaias6 e quando Dana Winter – um cantor estadunidense que por conta de uma sucessão de confusões acaba junto com o grupo – é atingido por um dardo de uma zarabatana embebido em curare7.

EXEMPLOS DE OUTRAS HISTÓRIAS QUE SE PASSAM NO BRASIL

Capa de Wolverine - Rio de SangueCapa de Wolverine - SaudadePor duas vezes o herói mais popular hoje dos quadrinhos Marvel, Wolverine, já esteve em terras brasileiras. Foram nas edições: Wolverine – Rio de Sangue (Pandora Books, 2001) e Wolverine – Saudade (Panini, 2007).

As histórias se divergem bastante no enredo e no desenrolar. Mas este fato pode ser explicado pela origem das publicações. Vamos aos fatos.

Rio de Sangue foi escrito por Joe Casey e desenhado por Oscar Jimenez. Na história, Wolvie vem para o Rio de Janeiro para rever um amigo e lida com uma seita de vampiros. Esta edição, produzida pela própria Marvel Comics em um especial lançado nos Estados Unidos originalmente em 1998, mostra um policial de bigode a la Salvador Dalí e de chapéu, um tubarão branco na praia carioca e o herói carrancudo bêbado torcendo para o Vasco!

Cena de Wolverine - Rio de sangueSaudade foi escrito por Jean-David Morvan e desenhado por Philippe Buchet, dois nomes bem conhecidos na Europa. Aqui temos Wolverine passando suas férias no Nordeste brasileiro, onde acaba se mete em uma conspiração envolvendo criminosos, exploração de menores e os moradores das favelas de Fortaleza. Saudade foi produzida pela matriz italiana da Panini com a licença da Marvel e mostra os brasileiros mais semelhantes com latinos do que com brasileiros em si e Fortaleza, que é uma cidade plana, é mostrada cheia de morros com suas favelas beirando as praias.

Resumindo, o Brasil quase sempre é mal retratado nas HQs que não são daqui. Mesmo com a tecnologia, parece haver uma preguiça dos autores em pesquisar melhor as diferenças de nossas cidades ou as características físicas entre nós e 'nuestros hermanos' latinos. Até mesmo os nossos nomes acabam criados semelhantes aos deles, como se pode ver nos heróis ‘brasileiros’ Fogo, de nome Beatriz Bonilla da Costa (da DC Comics), e Mancha Solar, Roberto da Costa (da Marvel).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nestas duas edições de Mister No somos apresentados a uma nova civilização e biodiversidade sem cair no didatismo – risco comum de histórias que se preocupam em resgatar períodos históricos ou locais reais muito específicos, como é o caso. Contribui para este aprendizado também os desenhos perfeccionistas de Roberto Diso.

Nolitta já chegou a revelar em entrevistas sua paixão pelo Brasil e as viagens para o Pantanal e para a Amazônia para coletar informações. Não é a toa que poucas foram às vezes em que o personagem sob sua tutela daqui se afastou. Destaque para suas viagens à África e à Rurrenabaque, pequena cidade da Bolívia para onde Mister No parte ao fim de suas aventuras.
As várias faces de Mister No
Mister No retratado por vários desenhistas ao longo dos anos

Embora não tenha sido o caso de apontar aqui nesta Observação, a narrativa em Rio Negro / O Templo dos Maias é bastante concisa e instigante, daquelas que se tem que prestar atenção nos detalhes. A história é bastante centrada no personagem principal, de modo que acompanhamos todos os seus passos, desde antes da aventura até após seu término.

O resultado final é uma mescla interessante em uma boa história.

MISTER NO #6 – RIO NEGRO
Roteiro: Guido Nolitta
Desenho: Roberto Diso
Editora: Record
Número de páginas: 172 páginas
Ano de lançamento: 1991

MISTER NO #7 – O TEMPLO DOS MAIAS
Roteiro: Guido Nolitta
Desenho: Roberto Diso
Editora: Record
Número de páginas: 172 páginas
Ano de lançamento: 1991


GLOSSÁRIO

1Tukanos – Aparentemente uma tribo indígena inventada pela autor.

2Mister No – Personagem criado em 1975 por Sergio Bonelli (utilizando o pseudônimo de Guido Nolitta) e Gallieno Ferri. Seu nome verdadeiro é Jerome ‘Jerry’ Drake, um piloto estadunidense sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que abandonou sua pátria desiludido com a violência e as imposições da sociedade ocidental. Em sua fuga, escolhe morar em Manaus, situada no coração da Amazônia. Nesta cidade, compra um velho Piper (avião monomotor) e passa a ganhar a vida como guia turístico. Honesto, sincero, amante do álcool e de mulher bonita, preguiçoso, mas pronto a se atirar em aventuras, é um rebelde por natureza, como demonstra seu apelido. A revista deixou de ser publicada no número 379 (dezembro de 2006) após Bonelli declarar que todas as aventuras possíveis dele já haviam sido lançadas.

3Guido Nolitta – Pseudônimo de Sergio Bonelli (1932-2011), falecido diretor e dono da editora italiana que leva seu nome, e criador dos personagens Zagor e Mister No.
Sergio Bonelli em exposição de Tex Willer
Sergio Bonelli e o principal personagem de sua editora, Tex
4Honduras Britânicas – Atual Belize. Destaca-se que a história foi publicada originalmente em agosto de 1976, portanto cinco anos antes da independência do país em relação ao Reino Unido.

5Platanos – Uma variedade da banana de polpa mais rija e casca mais firme e verde, também conhecida como banana-pão ou plantains, que chegam a ter de 30 a 40cm de comprimento, e são consumidas fritas, cozidas ou assadas, constituindo o alimento base de muitas populações de regiões tropicais, onde, muitas vezes, ocupam o lugar de pão às refeições.

Callitriche deflexa
Callitriche Deflexa ou Tapete-verde
6Tapaias – Não foi encontrada nenhuma planta ou tipo de musgo com este nome. O autor provavelmente quis fazer referência a Callitriche Deflexa, também conhecida como Tapete-verde, que tem as mesmas semelhanças mostradas na história. No entanto, segundo esta pesquisa, esta planta somente pode ser encontrada nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil.

7Curare – Nome comum a vários compostos orgânicos venenosos conhecidos como venenos de flecha, extraídos de plantas da América do Sul que possuem intensa e letal ação paralisante.

3 comentários:

  1. O pior é que nem os brasileiro valoriza isto aqui outro heroi que viveu umas aventuras por aqui foi Jonah Hex!
    30 DE JANEIRO DIA DO QUADRINHO NACIONAL

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    1. Olá, Veloso. Pior que é verdade. Não podemos considerar apenas quadrinhos nacionais, é muito bacana ver quadrinhos se passando em nosso território também. Abraço.

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    2. Oi. Sei que faz muito tempo do seu comentário, mas, qual é o nome dessa história em que Jonah Hex vem para o Brasil?

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