Uma duas | Filha da mãe!


Blog parceiro da Editora LeYa / Lua de PapelCapa do livro Uma Duas, de Eliane BrumUMA DUAS é um aterrorizante retrato de uma mãe e uma filha que nunca tiveram vínculo amoroso. O afeto entre elas, aparentemente impossível até então, aparecerá no momento mais inevitável da vida: a morte.

Este é o primeiro romance da jornalista Eliane Brum, premiada por seus livros anteriores – frutos de reportagens –, suas matérias e seu documentário.

A maior peculiaridade da obra está na formatação dos textos, bastante incomum na literatura convencional. Somos apresentados a três narradores: a mãe, a filha e um ser onisciente.

Esta Observação trata deste e de outros pontos relevantes da obra.

Obs.: a presente análise revela spoilers da história. Tenha isso em mente ao ler.

EU NÃO GOSTO DA MINHA MÃE!

“A risada do braço. O sangue saindo pela boca do braço. Quantas vezes já me cortei?” (pág. 7)

Foto de página do livro Uma Duas, de Eliane Brum
Os pensamentos da filha, sem negrito ou itálico
O livro começa com a narrativa da atormentada filha (Laura). Em um primeiro momento – fácil de identificar, pois está escrito sem negrito ou itálico –, em sua perspectiva mais pessoal, onde ela expõe todo o seu drama, reclama da falta de afeto/carinho da mãe e revela até suas intenções de fazê-la sofrer até a morte.

Tudo que Laura mais queria era livrar-se da mãe. A vontade era tão grande que no início da história ela mora sozinha e não fala há tempos com sua progenitora.

O contato entre ambas é retomado quando sua mãe é encontrada caída no chão do apartamento onde mora, cheirando a fezes e a mijo, e com metade do pé devorado pelo próprio gato. A partir daí sua vida muda, e com a intenção de se vingar, decide largar o emprego e cuidar exclusivamente da mãe.

Nesta parte, o tom muda, e forma da escrita também, pois aqui os textos estão em negrito e de modo a parecer um narrador externo – provavelmente parte do livro que ela menciona começar a escrever logo no capítulo 1 e que está diante dela no último.

Laura sente saudade do pai que abandonou a família por perceber o poder de opressão que a mãe tinha sobre a menina. Uma presença importante que poderia mudar completamente o que é hoje.

Tudo o que mais queria era poder sentir-se ela mesma, sem qualquer ligação com sua mãe. “Eu não tinha nada mais para esperar. Quando vagava me batendo pelas paredes da casa, me sentia ligada ao corpo dela como um daqueles cachorros que tem uma corda presa ao pescoço que os paralisa depois de alguns passos. No meu caso não era uma corda, mas um cordão umbilical. Aos poucos eu não conseguia mais distinguir entre o meu corpo e o dela”.

EU GOSTO DA MINHA FILHA!

“Ainda bem que você saiu. Eu já estava me sufocando com sua presença no ar que eu quase não respiro”.

Maria Lúcia nunca quis sofrer, “eu não queria causar mal, nem mesmo queria morrer. Só não queria ter de fazer esforço. Mas o corpo não desiste sem algum tipo de escândalo e aconteceu o que vocês já sabem”. Sempre quis manter a filha ao seu lado – não a odiava –, mas tudo tinha que ser sempre dentro de suas regras.

Depois da situação em que é encontrada em seu apartamento, ela ainda virá a piorar quando após novo diagnostico é constado um tumor no fígado, além de metástases no sistema linfático, no pulmão direito e no estômago.

O momento de glória de Maria Lúcia começa quando decide por no papel tudo que estava engasgado todos esses anos. É através dela – e teria que ser porque isto ela nunca contou a filha – que tomamos conhecimento da sua criação.
Foto de página do livro Uma Duas, de Eliane Brum
A escrita da mãe, sempre em itálico

A mãe morreu no parto e o pai, militar, incumbiu-se de cuidar de todos os pontos de sua vida, incluindo a educação. Maria Lúcia praticamente não saia de casa, não ia aos cinemas como as garotas de sua idade e vivia praticamente reclusa sem conversar com mais ninguém que não fosse seu pai.

A reviravolta vem quando seu pai morre subitamente quando ela tem vinte e dois anos e o porteiro do prédio onde moravam passa a cuidar dela – afinal, quase ninguém lembrava sequer que existia. Mas o tal porteiro começa aos poucos a sentir-se e agir como marido dela, inclusive iniciando-a sexualmente. Não agia por maldade – pelo menos não soa desta maneira –, mas no entendimento de Maria Lúcia ele estragou sua vida, principalmente depois que começou a engravidar.

Foram quatro meninos e, por último, uma menina, Laura. Os primeiros ela afogou na privada, por sentir que aqueles seres a corroeram por dentro. Em sua cabeça, “se eu gerava, ainda que à força, podia muito bem matar”. Laura seguiria o mesmo caminho caso não tivesse encarado a mãe debaixo da água e a fizesse perceber que aquela era diferente.

Para Maria Lúcia, o ‘marido’ teria que ficar afastado da filha como temor de que o que ele fez a ela se repetisse. Portanto, jamais o deixou tocar na menina. Manter a garota perto de si era sua forma de protegê-la contra os males de fora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Tinham me contado que os escritores eram uma espécie de deuses. Eles criavam um mundo em que podiam viver e escapavam deste pela porta dos fundos. Me prepararei a vida inteira para ser deus. E só o que faço agora é desinventar a mim mesma”.

No final do livro, não há mais o narrador. Temos contato com a ação acontecendo e dois pontos de vista, o da mãe e o da filha. Ambas não contam o que sentem uma para a outra, apenas escrevem.

Foto de página do livro Uma Duas, de Eliane Brum
O narrador onisciente, sempre em negrito
Quando descobre o câncer, Maria Lúcia implora a filha que ela a mate. A filha recusa, porque em seu entender fazer a mãe sofrer até sua morte seria sua forma de torturá-la. Mas recua, embora não soubesse como fazê-lo.

Uma Duas não é uma obra das mais simples. A trama é extremamente complexa e a forma de escrita deixa o leitor mais perplexo ainda. O cenário apresentado faz refletir a respeito das relações entre as famílias, e soa às vezes difícil imaginar que tal mãe e tal filha possam existir na vida real, por mais degradante que algumas sejam. Mas é real, é legítimo.

A mãe irá morrer com sua felicidade final, a descoberta do verdadeiro amor pela filha: “o que eu quero dizer é que não é porque a gente não saiba como fazer as coisas do jeito certo que a gente não ame. Eu não sabia qual era o jeito certo de amar, só isso”. Enquanto a filha descobrirá apenas naquele momento que as semelhanças que mantinha da mãe jamais poderiam ser quebradas, mas não havia necessidade de agir como ela. E no último momento, começa a se quebrar, revelando seu verdadeiro intento: “Estou exaurida. Escrever ficção é como emprestar meu corpo para mim mesma. Escrevi para poder matar a minha mãe. Essa possibilidade única que a literatura dá. E talvez para amá-la”.

UMA DUAS
Autora: Eliane Brum
Editora: LeYa
Número de páginas: 176
Ano de lançamento: 2011

4 comentários:

  1. Boa dica, Luis. A história dessa mãe e dessa filha é bem interessante. Confesso que não tinha ouvido falar desse livro. Gostei. Abração!

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    1. Luis? rs. Apesar da troca do nome fico feliz por ter comentado, procure o livro, vai gostar! Abraços.

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  2. Que história louca...rs!
    Mas muito legal!
    Depois vc me empresta o livro tá!
    Bjs

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    Respostas
    1. Louca não é nem meia metade...rsrs. Está disponível quando você quiser pegar. Beijos.

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