Qual o marco zero da sua coleção? Qual a importância que esta revista tem para você hoje? Era uma boa história? Tem vergonha de dizer que a leu? E talvez a pergunta mais importante: o que levou você a lê-la?
Nunca fui grande fã de histórias em quadrinhos, tinha lido algumas do Homem-Aranha, compradas pelo meu padrinho, quando eu era criança e só. A primeira revista que li e que iniciou minha coleção foi Marvel 2000 #4, lançada em abril de 2000.
Esta publicação trazia encartada, entre outras histórias, a do Demolidor. Um personagem que eu desconhecia totalmente, mas que felizmente dei sorte de ler uma aventura (ainda que pela metade) que, apesar da complexidade de sua trama, meio que era voltada para leitores novatos em super-heróis. Esta saga chamava-se DEMOLIDOR – DIABO DA GUARDA.
Por culpa dela, e das histórias que viriam a seguir, o herói tornou-se meu favorito dentro daquele mundo que eu viria a navegar por muitos anos. Esta Observação a resgata para uma profunda análise.
NASCE O HOMEM SEM MEDO
Matthew Murdock nasceu para os quadrinhos em 1964 pelas mãos de Stan Lee e Bill Everett com a junção de duas palavras em inglês, ‘Dare’ e ‘Devil’. Em uma tradução livre poderíamos chamá-lo de Diabo Ousado ou Diabo Audacioso (a editora G.E.A., nos Brasil dos anos 1970, o renomeou Defensor Destemido para justificar o DD no peito do personagem, mas o nome nunca pegou).
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O acidente o deixou cego, mas – sem motivos claros – ampliou seus outros sentidos. O que o ajudou a continuar a dedicar-se aos estudos.
Seu pai, em seguida, é assassinado por se recusar a entregar uma luta. Vestindo um manto vermelho e amarelo – em homenagem ao pai –, adota o nome de Demolidor e parte para vingar seu progenitor. E deste então (posteriormente, adotando uma roupa totalmente vermelha) vive uma vida dupla: de dia como advogado; de noite como um herói mascarado.
HISTÓRIAS MARCANTES

O ápice viria com a saga A Queda de Murdock. Karen Page, antiga namorada de Matt, vende a identidade do herói para um traficante em troca de drogas, e este revende ao Rei do Crime – um de seus principais inimigos. O que vem a seguir é uma reviravolta, onde o herói precisa encontrar suas próprias forças para se reerguer, enfrentando tudo de pior que viesse.
Outra história marcante ficou pelas mãos de Jeph Loeb e Tim Sale, Demolidor: Amarelo, contando os primórdios do herói, quando abriu seu primeiro escritório com seu amigo de longa data Foggy Nelson e Karen era a secretária.
Nos dias atuais, as histórias do personagem tem tido uma sequência bem elogiada com os escritores Brian Michael Bendis, Ed Brubaker, Andy Diggle e Mark Waid, além de belíssimos artistas como Alex Maleev, Michael Lark e Paolo Rivera.
O QUE KEVIN SMITH FOI FAZER NOS QUADRINHOS
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O diretor e roteirista Kevin Smith |
Para a revista do Homem sem Medo foi convocado o roteirista e diretor Kevin Smith, conhecido por seus filmes cult com várias citações ao mundo dos quadrinhos, cinema e mundo nerd em geral. Eis que a novidade (com seu majestoso poder de criar belíssimos diálogos) foi bastante positiva para a indústria.
O DIABO, A CRIANÇA E O VILÃO INESPERADO

Fé e religiosidade são os temas centrais da trama. O desenrolar segue a mesma temática, fazendo o herói recorrer a sua mãe, hoje uma freira, para tentar encontrar-se novamente com Deus. Curiosamente, ela conta-lhe uma história que o fez retomar sua fé, mas a mim teve efeito totalmente contrário. O que não desmerece a parábola:
“É a história de um cavaleiro e um monge. Os dois viajam juntos, em silêncio, por algum tempo, até que o cavaleiro finalmente fala...

O monge pensou a respeito e deu de ombros, respondendo:
- Nesse caso, suponho que vou ficar triste. Mas diga-me, senhor... o que acontecerá quando você morrer e descobrir que ele existe?”
Também é procurado o Dr. Estranho, um poderoso mago do Universo Marvel, que convoca o demônio Mefisto. Este retoma uma passagem bíblica sobre o retorno do filho de Deus: “Não sou mestre em literatura, mas eu diria que o texto indica que o assim chamado redentor há de se manifestar numa forma muito diferente da de uma criança humana, não concorda, curioso amigo de Strange?”
O que vem a seguir é uma sequência brilhante. Matt retorna a Igreja de sua mãe, onde havia deixado o bebê (uma menina) e lá encontra uma chacina. O Mercenário surge e lhe desfere uma boa quantidade de golpes. Ele viera atrás do bebê a pedido do grande vilão por trás de tudo. Karen, que havia voltado para o herói ao descobrir que era portadora de HIV/Aids, tenta ajudá-lo, mas, assim como havia acontecido com Elektra, acaba morta pelo Mercenário. A raiva que o Demolidor sente será a válvula que o levará ao embate final contra quem tramou contra sua vida.

- Ironia: “Sou um bom mentiroso. Faz parte do meu trabalho. Qual é o problema? Quero falar com ela sobre um caso... ou um boato envolvendo a Hidra... ou uma... tudo bem... não sou um mentiroso tão bom assim” (o advogado Matt tentando arrumar motivos para ligar para a Viúva Negra, sua ex-namorada). Impossível listar quantas vezes Kevin Smith faz uso da ironia durante a saga, sendo que até de um padre foge uma: “Mas é pra isso que estou aqui... pra reafirmar que Deus vai te amparar. E, embora você sinta que o esqueceu, eu lhe garanto que ele se lembra de você. Mas devo dizer que... é bom ver que você decidiu lidar com seus sentimentos aqui em vez de escolher o ritual mais popular dos anos 90, a ‘terapia’”.
- Jay e Silent Bob: os dois personagens fixos dos filmes de Smith também dão o ar da graça aqui, mas como máscaras (pág. 154), pichação de muro (pág. 185) e por aí vai.
- Muro: a mesma pichação da página 185 também traz as inscrições J+A (Jimmy Palmiotti e Amanda Conner), J&N (Joe Quesada e Nanci Dakesian) e K+J (Kevin Smith e Jennifer Schwalback). Ou seja, os autores e suas respectivas companheiras. Além disso, tem a frase Who Watches the Watchmen (Quem Vigia os Vigilantes, em português), em referência a famosa saga de Alan Moore.
- Fatos históricos do herói: por ser uma retomada do personagem, muitas passagens contam seu passado e outras são usadas como elementos da história atual. A própria ideia da saga é uma homenagem à Queda de Murdock, de Frank Miller, e ela é mencionada quando o Demolidor explica a seu inimigo que o Rei foi muito mais eficaz quando tentou destruí-lo. A morte de Elektra, a mãe freira de Matt e o bandido Tucão também são da fase do artista e servem como embalo aqui.
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Jesse Custer, o cara de preto no canto esquerdo da imagem |
Há muito mais e vale a pena reler e ir pegando tudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final de tudo, o Demolidor é levado a descrer não em Deus, mas em seu próprio papel de herói. E depois de um longo monólogo da sua parte, um velho conhecido seu, um tal amigão da vizinhança, o salvará. Tomo a liberdade para copiar o diálogo entre os dois, sei que é meio longo, mas vale muito a pena para entender a determinação de um super-herói fantasiado:

“Porque, apesar de todo o ‘bem’ que tentamos fazer não podemos deter a torrente de morte e injustiça que ameaça nos afogar todos os dias. Somos culpados de sermos ataduras sobre lesões de lepra, mas nossa arrogância nos leva a acreditar que fazemos alguma diferença. Bem, não fizemos diferença alguma pra Quentin Beck.
“Toda a morte e loucura que ele provocou... tudo em nome da autoestima. O cara acabou com vidas... promissoras ou não e a troco de quê? Provar que não era o grande fracassado como imaginava que o mundo o via? Que piada. Não, Peter... não existem inocentes. E, mesmo pela mais estrita das definições, pessoas como os entes queridos que você mencionou e a própria Karen são culpadas. Culpadas de morrerem e nos deixarem sozinhos neste lamaçal de solidão e sofrimento.
“E dá pra culpá-las por isso? Por que deveriam se apegar à vida? Só pra ficarem com mentirosos como nós? Porque é isso que nós somos... mentirosos. Tudo que podemos oferecer são falsas esperanças. Trajando estas fantasias e espancando manés inveterados e assaltantes, dizemos às pessoas que ‘vai dar tudo certo. Estamos aqui pra acabar com essa loucura’. Mas é tudo mentira, porque a gente sabe que não pode evitar todos os problemas. É coisa demais. E, no caso de alguém como Karen, essas pessoas estão condenadas apenas por se associarem a nós, doidos, fantasiados. ‘A’ me odeia. Então, num esforço pra me destruir, mata o amigo do herói ‘B’. É insanidade, cara! E nós somos a engrenagem crucial na máquina da danação, gente como nós! Porque nada do que a gente faz traz bem algum.
“Veja o Beck e todas as vítimas dele nas últimas semanas. Você pode me dizer uma coisa... só uma coisa... que faça sentido nesse absurdo?!”
Ao que o Homem-Aranha rapidamente lhe responde:
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Valeu, Kevin, Joe e Jimmy. Devo-lhes esta.
DEMOLIDOR – DIABO DA GUARDA
Título original: Daredevil #1-8 and ½
Roteiro: Kevin Smith
Desenho: Joe Quesada (1-8); J.G. Jones, Steve Dillon, David Mack, Jimmy Palmiotti & Kevin Nowlan, John Romita Sr., Jae Lee, Amanda Conner e John Cassaday (½)
Arte-final: Jimmy Palmiotti (1-8)
Cores: Dan Kemp, Laura Depuy, Drew Yackey e Richard Isanove (1-8); Chris Sotomayor (½)
Editora: Panini
Ano de lançamento: 2009
Textos da série especial Memórias:
Demolidor - Diabo da Guarda - Toy Story 3 - O Corvo - Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
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